Me sentei na cadeira azul da recepção. A mulher, atrás do balcão, lançou-me o mesmo sorriso vago que lançava toda semana.
Sussurrei um bom dia daqueles que se dá menos por desejo benfazejo e mais por hábito. Ouço a porta rangendo ao se abrir. Antecipo a fala do analista: "vamos lá?". Uma raiva súbita me atravessa e tenho vontade de ir embora.
"Vamos lá?"
Me levanto da cadeira retraindo os lábios para forjar alguma simpatia. Não consigo. O que não era mais do que uma rajada de raiva se torna então um sentimento amargo com salpicos de uma ternura nauseante.
"Ele faz um bom trabalho, tenta me ajudar" - invisto nesse pensamento. Quero ser generosa.
"Como foi a semana?"
"Foi boa! Tenho pensado sobre..."
Os olhos do analista soerguem-se e piscam lentamente. Está com sono. Faço sono enquanto falo, sou monótona, não tenho importância! Me calo.
"Sobre o que tem pensado?"
A raiva dá as caras outra vez. Sinto vontade de me dar alta. Resisto a falar que creio que não devemos mais nos ver.
"Tenho pensado na minha infância"
Seus olhos faíscam, não sei se por desgosto ou curiosidade. Sinto meus lábios se amanteigarem. Tenho vontade de umedecê-los com a ponta da língua mas não o faço. Nunca passo a língua pelos lábios com medo de ser mal interpretada. Penso ser um dos ossos do ofício de ser mulher. Se pudesse, acenderia um cigarro.
"Sinto que fui negligenciada"
"Olha, os pais erram. Ninguém teve a infância que desejava. Famílias não são perfeitas".
Um conjunto de frames risca minha memória: me vejo agachada no quintal, tocando a ponta da mangueira de jardim com os dedos. Há diante de mim um anel de metal. Será um anel mágico? Um propósito que justifique existir de forma tão descompassada, sempre apressada em compreender o que não tem explicação? Não... O anel havia se soltado da válvula da mangueira. Nenhuma entidade, nenhuma metafísica, nada. Não havia chegado a realização da minha fantasia de criança. Não havia nenhum chamado para a aventura. E a vida continuava. O analista diz alguma coisa. Eu não estava escutando.
"Você tem usado drogas?"
A pergunta retumba no meu peito e sinto minhas pernas tremelicarem. Tento relaxar a tez para as sobrancelhas não arquearem. Não quero demonstrar, mas estou indignada. Reflito sobre como acho moralizante essa pergunta feita sem opulência.
"Uso drogas as vezes, mas não vejo nisso qualquer problema".
A expressão do analista se torna severa mas vejo que está francamente preocupado.
"Considerando sua impulsividade, não acha que esse seja um hábito perigoso?"
Volto ao quintal, à mangueira de jardim, ao anel que não é mágico. Olho pra criança agachada perto dos vasos e sinto que preciso dizer qualquer palavra de consolo.
"O que devíamos fazer? Proibir todas as drogas?"
Ouço sair da boca do analista um discurso que se quer neutro mas tem numa normalidade universal e implacável seu cativeiro.Penso que não sou normal, em seguida penso que não sei o que significa ser normal e concluo que não há nenhuma normalidade. A criança se levanta. Ela sabe que estou ali? Com olhinhos sôfregos ela atravessa o canteiro, estende as mãozinhas e apanha uma azaléia.
Talvez eu seja a entidade que ela espera que vai salva-la.