quinta-feira, 21 de abril de 2022

Águas

Quando abrirem as comportas da represa branda

As águas caudalosas 

Trarão boiando 

As angústias ancoradas 


Um naufrágio vertiginoso

Nos fantasmas do passado


Mas quando cessar a tempestade

Ao término da cesárea 

Encerrado o ruído luminoso 

A vergonha estampada na cara 


Razão das águas rasas 

Que é terminar com a insônia 

Afrouxar amarras 

Que subtraem à soma 

Dos vermes que o corpo comem 

À terra que abraça 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A criança e o analista

 Me sentei na cadeira azul da recepção. A mulher, atrás do balcão, lançou-me o mesmo sorriso vago que lançava toda semana. 

Sussurrei um bom dia daqueles que se dá menos por desejo benfazejo e mais por hábito. Ouço a porta rangendo ao se abrir. Antecipo a fala do analista: "vamos lá?". Uma raiva súbita me atravessa e tenho vontade de ir embora.

 "Vamos lá?" 

Me levanto da cadeira retraindo os lábios para forjar alguma simpatia. Não consigo. O que não era mais do que uma rajada de raiva se torna então um sentimento amargo com salpicos de uma ternura nauseante. 

"Ele faz um bom trabalho, tenta me ajudar" - invisto nesse pensamento. Quero ser generosa. 

"Como foi a semana?" 

"Foi boa! Tenho pensado sobre..."

Os olhos do analista soerguem-se e piscam lentamente. Está com sono. Faço sono enquanto falo, sou monótona, não tenho importância! Me calo. 

"Sobre o que tem pensado?"

A raiva dá as caras outra vez. Sinto vontade de me dar alta. Resisto a falar que creio que não devemos mais nos ver.

 "Tenho pensado na minha infância"

Seus olhos faíscam, não sei se por desgosto ou curiosidade. Sinto meus lábios se amanteigarem. Tenho vontade de umedecê-los com a ponta da língua mas não o faço. Nunca passo a língua pelos lábios com medo de ser mal interpretada. Penso ser um dos ossos do ofício de ser mulher. Se pudesse, acenderia um cigarro.

"Sinto que fui negligenciada"

"Olha, os pais erram. Ninguém teve a infância que desejava. Famílias não são perfeitas". 

Um conjunto de frames risca minha memória: me vejo agachada no quintal, tocando a ponta da mangueira de jardim com os dedos. Há diante de mim um anel de metal. Será um anel mágico? Um propósito que justifique existir de forma tão descompassada, sempre apressada em compreender o que não tem explicação? Não... O anel havia se soltado da válvula da mangueira. Nenhuma entidade, nenhuma metafísica, nada. Não havia chegado a realização da minha fantasia de criança. Não havia nenhum chamado para a aventura. E a vida continuava. O analista diz alguma coisa. Eu não estava escutando. 

"Você tem usado drogas?" 

A pergunta retumba no meu peito e sinto minhas pernas tremelicarem. Tento relaxar a tez para as sobrancelhas não arquearem. Não quero demonstrar, mas estou indignada. Reflito sobre como acho moralizante essa pergunta feita sem opulência.  

"Uso drogas as vezes, mas não vejo nisso qualquer problema".

A expressão do analista se torna severa mas vejo que está francamente preocupado. 

"Considerando sua impulsividade, não acha que esse seja um hábito perigoso?"

 Volto ao quintal, à mangueira de jardim, ao anel que não é mágico. Olho pra criança agachada perto dos vasos e sinto que preciso dizer qualquer palavra de consolo. 

"O que devíamos fazer? Proibir todas as drogas?"

Ouço sair da boca do analista um discurso que se quer neutro mas tem numa normalidade universal e implacável seu cativeiro.Penso que não sou normal, em seguida penso que não sei o que significa ser normal e concluo que não há nenhuma normalidade. A criança se levanta. Ela sabe que estou ali? Com olhinhos sôfregos ela atravessa o canteiro, estende as mãozinhas e apanha uma azaléia. 

Talvez eu seja a entidade que ela espera que vai salva-la.

domingo, 26 de dezembro de 2021

Refluxo


Não consigo dormir porque minhas fixações estão implacáveis. Falta ritmo na solidão pra tentar dar conta do desejo insaciável de saber coisas. Saber coisas e as coisas que estão por trás das coisas. Uma alma penada obcecada por insegurança e miséria insiste em sussurrar "isso não é pra você". Pensando em Brasil, a gente cresce achando que isso é mesmo pra ninguém ou quando muito, quem sabe, pras pessoas que moram em casas com pianos que tocam nas salas que vibram cristaleiras. E se eu enlouquecer? Mas se a minha loucura típica faz morada em ser "deserto que só encontra oasis no deserto ao lado" e envolve sempre a alma ao lado e a alma ao lado da alma ao lado e daí pra fora? Sempre, sempre fora. Talvez eu só seja mulher. Adicta desse tesão insuportável em cessar esse fluxo caudaloso, de correntes que se chocam entre si e nunca deságuam, muito menos coincidem num mesmo leito... Então sexo, drogas e conversas intermináveis. No meio disso, alguns cigarros. Tudo pra não ter de defrontar o que é basal, as águas que correm por baixo das águas. Medo de esbarrar com o despropósito. Isso é de utilidade pra vida num registro, digamos, da praticidade? Atravessar dias frios? Por si só, acho a travessia pretensão de muita audácia já. Me bastar, ir de encontro sem pechincha. Tornar os encontros mais acidentais, menos premeditados. Amar com toda a verdade de amar. Amar com a pureza que é de amar. Ou no mínimo, não desatinar desesperada igual criança, porque chega uma hora que ninguém segura nossa testa quando vem a ressaca.

Lavoura

 Mas deixa a vida te lavrar a cara, como se diz 

Aí me fala da leveza do amor 

Então me dá aula sobre autocuidado

Me convence que saudável é o contrário


Deixa a vida te lavrar a cara 

Encara os sulcos da pele e a brancura nos cabelos 

Aí me fala de solidão aprazível 

Me conta da sua rebeldia 

Faz vibrar a sua voz de combate 

Mas antes 

Espera a vida te lavrar a cara


Espera o tempo curar 

Fermentar os desejos

Escancarar a crueza  

A realidade 

Nua cheia de ruga

Nudez que não seduz 

Qualidade de se decepcionar 

E continuar amando 

Sem jurisdição 


Espera a vida te lavrar a cara

Aí me conta dos contos que te contaram 

Vê que a beleza encara o trágico 

Que viver não é coletânea de eventos épicos 

Mas sucessivos acidentes 

Acontecimentos de desimportância clara 

Espera a vida te lavrar a cara



sábado, 4 de dezembro de 2021

 Pessoas são acostumadas com pedras

Sob tantas contusões já não sentem 

substância mais leve.


E as palavras são enganosas

Tracejam seu significados 

Mas não dizem nada.

Rastejam sob o ar 


Ouvidos sangram com gritos

Corações encolhem com prantos 


Mas as palavras são dissimuladas 

Palavras parecem um escritório

Cheio de gente engravatada


Cadências, rostos, lágrimas 

São espetáculos 

Explodem 

São golpes indefensáveis 


Por isso são dignos do colo

que seres opacos 

sufocam com contratos 

O que jamais será perene.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

Uma inconstância [constante] contesta a segurança do que guarda o crânio.
A intempestividade tempestuosa troveja o que vai no peito. 
Rajadas trincam espelhos imaginários 
que se derramam em derradeiras imagens estilhaçadas,
 precipitando fases, frases, faces, sentimentos? 

Fronteiras que moram entre uma e outra coisa. 
Nuances que matizam os entremeios 
se vão emaranhadas, enlameadas, 
borrando em furtacor, 
furtando a cor dos dias de paz.
Os venenos potentes  num caldeirão efervescente 
fermentando mágoas na cabeça do século. 
Males crescentes jorrando cascatas luminosas,
pixelando quadros estáticos,
Teias, telas, tetas. 

Vulcões de dores agudas em plena erupção de seu gozo carrasco. 
O tirano habita em nós, 
nos nós dos laços que atam desejos 
ao ventre carente, ardendo. 
Inconstanciazinhas, dissipando razões minúsculas, cretinas. 
Certezas de merda. 
Receita é a dúvida.
Recebam laudos que provam
                          [ou abnegam?
que é remédio 
um enorme buraco no seio 
vazio e mudo. 
Vazio-mundo.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

 Gotas de saudade tamborilam 

plácidas sob olhos envidraçados. 

Uma febrezinha colérica rasga o corpo por vingança. 

A vida gargalha como coisa fácil. 

Sem esmero, pousou manso sobre a carne. 

Rodopiou, esmaeceu. 

No duro árido floresceu. 

Amor é pai da dor. 

Amor é filho do prazer. 

Além das bordas do pacto, 

o amor nunca morreu.